segunda-feira, novembro 28, 2005

Conto:

Jesus


E então Deus disse:
- Como desobedeceste ao teu Pai chegando atrasado dois dias a casa, vais ficar durante uma semana divina de castigo.

E Jesus, amuado com a sua cara de santinho responde:
- Mas oh meu Pai, eles só me deixaram ressuscitar ao terceiro dia.


E indiferente às desculpas do filho, Deus faz Jesus passar uma semana, fechado no quarto, a contar todos os átomos de hidrogénio do universo.

segunda-feira, novembro 14, 2005

Crónica

Crónica Lisboa Atolada na Merda

Viajar por uma cidade é procurar involuntariamente um encontro com estórias sobre gente. No campo ou lá na terra onde judas deixou as botas as pessoas são mais escassas, a natureza ainda é a enarração principal do dia a dia. Na cidade, sotoposto do céu, as pessoas são a única natureza.
Mas afirmar uma Lisboa atolada na palavra começada por m... não é novidade. A sujidade está por toda a parte. No ar, no chão e particularmente nos outros. Somos muitos a atropelarmo-nos pelos espaços vazios da cidade, e limpa-los é sinónimo de criar uma zona de quarentena, isolada, fechada às pessoas e aberta aos técnicos do teste do algodão para uma manutenção periódica de remoção de partículas sólidas e bacteriológicas. Ou seja, a limpar, ninguém passa. Daí a dificuldade de limpar uma cidade.
Mas a visão da limpeza que impregna o pensar dos senhores que mandam levou-os sensatamente a terem ideias e conseguiram implementar a lei na Cidade de limpar aqueles problemas que os nossos melhores amigos não podem, por rações da sua própria natureza animal, apanhar para um saquito e depositar no lixo. Coube aos donos a responsabilidade. E até casas de banho para os caninos se construíram nos jardins. Só é pena que para aqueles que lançam para o chão a beata morta do cigarro, ou o papel e o plástico amarrotados do chocolate e da sandes, a responsabilidade não possa recair sobre os seus respectivos donos. Os donos desses ainda não foram encontrados e identificados.
Mas não era sobre estes factos, tão do conhecimento de todos nós, que quero falar-vos.
Hoje, segunda feira, primeiro dia da semana de trabalho, o termómetro marcava 8 graus Celsius enquanto passava de comboio por Belém. Às oito menos cinco cheguei ao Cais do Sodré. A manhã prometia-se bem gelada, atirando bem lá para o fundo da memória o recente verão seco e queimado. Como de costume dirigia-me para a paragem do autocarro. Apanhei os habituais jornais gratuitos que à saída da estação são distribuídos, e pu-los debaixo do braço aconchegando o casaco ao pescoço. Desfilava eu com os demais sobre a calçada que circunda a entrada da estação de comboios e passo os olhos sobre os três degraus que lhe davam acesso. Como habitual alguns ali esperavam ou descansavam sob o abrigo dos toldos salientes. Eu caminhava em passadas longas, como é meu jeito para quem tem um metro e 91, e por momentos pousei os olhos num mendigo que acocorado avidamente sobre o seu saco de haveres lançava-me uma expressão de ingénua inocência. A seu lado, estranhamente jazia um estranho amontoado, quase um bolo cónico, do que me pareceu ser caca, nojenta e repugnante. E as pessoas à minha volta iam passando. Mas por que se sentara o homem tão perto de tal monte de excrementos? Parecia que o cão da senhora dos jornais tinha feito ali mais um grande monte. Impressionante. Será que o desgraçado não se tinha apercebido da proximidade daquele presente? Mas horror dos horrores!! Eu é que não me tinha apercebido do que se estava a passar. Tive dificuldades em processar e interpretar as imagens que me chegavam aos olhos. A perna que levantei para dar mais um passo demorou minutos até voltar a pisar a calçada branca. O enorme monte de excrementos parecia estar a crescer das costas do mendigo. O deplorável homem, de rosto barbado e estagnado, arrefecia, de rabo para o ar de um branco como leite, com as calças descaídas até meio da coxa, sobre os três degraus de acesso à estação, literalmente, cagando-se para quem quisesse ver. Admirável, soberbo! Não consegui compreender inteiramente o que estava a acabar de ver e, sentindo finalmente o meu pé tocar o chão, lá continuei, eu, meio indiferente meio atónito com o quadro que vira, para a paragem do 45. Não voltei atrás para me certificar se tinha realmente visto bem, pois sabia que o tinha. Talvez não me tivesse demorado mais do que um segundo a observar o homem defecando no abrigo em que já me acostumara a reconhece-lo. Naquela manhã estava realmente um frio do carago (ou seria do cagado...).

segunda-feira, novembro 07, 2005

A dor

A dor que ostento não tem rosto,
Não carece de uma face para ser vista.
E sem banco, gente, ou outro encosto
Pareço perdido no meio desta rixa.

Sufoco. Não consigo respirar
Este ar que inspiro
Já me deixou de alimentar.

Não sei o que fazer,
Não sei por onde começar.
Tu estás longe, longe do meu amar
E o querer é tão grande,
Tão grande que me põe a chorar.

Um sorriso teu bastava
Um olhar já era suficiente.
Mas não sabia se lá estavas,
Não sabia que me esperavas,
E por aqui fiquei a pensar
Envolvido neste perigo eminente,
De te desejar.

Esta vela que acendo
Por esta alma despedaçada
Foi devida a um telefonemaA uma chamada desencaminhada.

As palavras surgem rasgadas pela língua e comprimidas por entre os dentes. Saem sonoramente presas pela garganta num abrasão de ar que as convoca à vontade do emissor. As regras estão perdidas no interior do ente transmissor e projectam-se para fora do indivíduo por uma transcendente força nervosa, electrizada por nano impulsos treinados por uma experiência acribia patriarcal.

Escrever corrói o pulso e as falanges. Os tendões apertam-se no esforço dos músculos que mantêm a clareza da vontade cerebral. É preciso manifestar as palavras que se ocultam em estratos dermatológicos de células nervosas. É preciso descamar essa dissemia incongruente de significados e signos, que se atropelam na auto-estrada da razão e ordena-los, dar-lhes um sentido, chama-los ao seu real valor e interesse de emblemas da realidade mental. É como tirar coelhos duma cartola e sempre sair um coelho branco; mas um coelho é um coelho e tem uma personalidade, uma experiência única, uma vida especial que o moldou. Não é só de pelo branco.

O perigo reside nos signos e nos seus significados. Duas colheres cruzadas sobre uma mesa prateada; Um espelho ao sol com um X no centro desenhado; uma roseira que dá rosas negras e brancas, em que as negras têm cheiro e as brancas não. É um mundo cheio de marcas com múltiplos significados para múltiplos observadores. Cada um vê, lê, interpreta como pode o que lhe chega aos sentidos. Os filtros são seis: os sentidos e a intuição (ou experiência acumulada).

Abre um buraco e enfia lá a cabeça e o que tudo ela contem.
Abre uma cova bem funda e enterra-te bem no interior, escuro e isolado.
Para que as almas te não toquem, para que os inquietos não te perturbem,
Para que os fantoches não se riam, para que o mundo se esqueça de ti.
Para que o mundo se esqueça de ti.
Para que o mundo se esqueça de ti.
Para que o mundo se esqueça de ti.
Para que se esqueça,
Para todo o mundo se esquecer,
Para que não mais se volte a lembrar.
E então, é do esquecimento que te lembrarás e acordarás,
E da ausência surgirás como a água que há muito tempo caiu e pelo chão se infiltrou,
A ave que se auto inflama, arde e cai na forma de cinzas que o vento leva,
Para que ao sentir uma nova fogueira apagada ela de lá saltar, renascer e voltar.

Mas era mentira

Do equóreo peixe que me prometeram
Nem cheiro nem visão.
Mentiram sempre que poderam
Só metendo os pés pelas mãos.
“Lança a cana” “Estica o fio”
Cai o anzol nas águas do rio,
“Espera agora que ele pique”
“Que morda o engodo e que fique”,
“E tu verás!”
Picou a água, a chuva e o vento,
Picou a esperança o sonho e o tormento
E mais nada picou.
Esperei pensando que existia
Esperei pela mentira que sabia
Esperei por acordar da letargia,
E ainda sorria.

Mas era mentira.

Parti a cana e o fio cortei,
E de tanto esperar não mais esperei
E cansado de confiar desconfiei,
Mandei-os à merda e dali para fora voei.
Asas não tinha mas da verdade cresceram
A sabedoria era mínima e da ignorância floresceram.
A esta pesca não quero eu mais ir.

terça-feira, novembro 01, 2005

Olá viajante cibernético, este é um nicho virtual do Paulo Astro. É com um pequeno passo que se inicia uma grande viagem. Este é mais um pequeno passo.