quinta-feira, junho 29, 2006

O Sentir da Água

Escrever nunca é para mim um fim, um objectivo. É só um meio, ou o meio que fica entre a ponta do que sinto e a extremidade da razão, do pensar consciente. E, por vezes, entre a sensação de uma imagem e a razão imaginativa sobre ela, fico a pensar nas sensações. E então apetece-me escrever, relatar o que me entra nos sentidos e que me perturba a razão do que conheço. Sentir cada momento é senti-lo único, talvez parecido com outros momentos, mas nunca igual. E escrevo. Imagino o que senti, porque senti e porque o pensei assim. E escrevo. Outras vezes corro, expiro fortemente pela boca como um cavalo cansado de correr, mas não relincho. Escrevo.
A imagem era a de uma ela, enquadrada num cenário tropical com abundante água em volta. E, focado naquela imagem... imaginei e tive de escrever. E escrevi:

O Sentir da Água

Água de um lugar lá longe,
Que lambia lentamente os lábios da margem,
Esperavas espraiada a chegada de uma aragem.

Na margem,
A arreia que se afastava aos teus passos
Apertava-se em abraços entre os dedos laços.
Cada toque dos pés no areal era felicidade entre os grãos,
Que se sentiam como farinha quando o padeiro lhes deita as mãos.

Amassado pelo andar
Havia naquele ar
Laivos de quem só caminha.

E a água que lambia
Que lá longe aguardava
Sentiu um cabelo
Um dedo que poisava.

E a água que lambia
Que lá longe aguardava
Penetrou-se de frescura
De desejos que não sabia a cura.

E a água que lambia
Que lá longe aguardava
Sentiu uma saia branca
Que por ela mergulhava.

E a água que lambia
Engoliu o teu corpo
De criatura no mundo criada,
E a água que lambia,
Saboreou a tua pele
Por raios de sol caiada,
E a água que lambia...
Deixou-se parada estagnada...
E lambeu uma vez mais as margens...
Mas não mais pelo sabor de uma aragem.

(5/6/2006)

Paulo Astro.