quarta-feira, agosto 26, 2009

Amor e Ponto Final

Ele há livros que nos tocam de alguma maneira, uma passagem, frases que nos ficam na memória e, este livro de contos rematou de forma exemplar. E para aumentar o interesse na sua leitura, o que recomendo,o autor é português. É o primeiro livro que leio dele e tou com pedalada para ler outros que encontre. Mas acontece que este é ainda o primeiro e único do autor, não se sabendo se veio para ficar se não.

Mas até lá deixo aqui o excerto que me perturbou, a ideia que me deixou com arrepios e de cujo valor de verdade me fiz crente. O sumo está no ultimo paragrafo, mas deixo parte do contexto do conto para vos situar na ideia do autor: pelo menos assim o espero, pois o conto é demasiado longo para o dactilografar para o PC.


Ponto Final

(...)

Tento entrar no modo de hibernação mas o sono não chega, ou aliás, o sono até chega mas a minha loucura de te ter em pensamento enquanto ele te tem em corpo é enorme. E mais louco fico quando me convidas para ir contigo para um sitio ermo, viver mais isolado do mundo contigo e tu a continuares nessa tua relação que desaprovo, por que sinto ciúmes e inveja, de eu não ser a pessoa de quem dormes junta. A amizade que deixamos crescer brotou raízes firmes e senti que podias precisar de mim, e eu, sem ninguém a quem sentir dar ajudar, pensei que seria bom seres tu. E foi. Mas nessa tua necessidade de companhia, não vou poder acompanhar-te mais. O meu limite é este, este que ninguém que me conhece me recomendava transpor, limite que quem não te conhecesse não compreenderia. Eu senti que me poderia doer, que por cada noite que não te vejo a embrulhares-te na tua cama o meu coração se sobressalta, esperneai e grita desiludido com a tua escolha. Mas foi a tua escolha, não a minha. A minha escolha sempre foste tu, a minha prioridade eras tu. Alimentava uma esperança vã de que me visses como eu te via. Desafiei o meu desejo psicológico de conforto e embarquei na nau que velejavas. Não me arrependo em nada, não nego o quanto te amo e o quanto queria que também me amasses, mas o teu amor não é o mesmo que o meu e sempre o soube. E sempre tive a esperança de estar errado.
Mas não estava!
E tive que deixar sentir na carne essa dor de apaixonado não correspondido, de deputado sem votos, de Romeu sem Julieta, para finalmente ver com toda a clareza o jogo que me aproximava de ti. De ver por que mantinha a esperança nas palavras doces que me dirigias quando te sentias melhor comigo do que com ele. Quando não querias estar com mais ninguém eu andava por perto, a farejar-te como um cão que fareja o dono quando está ferido e que o tenta consolar, quando te socorria do teu estado mórbido e te reanimava para a vida com gestos simples, coisas banais que tu eliminavas, trabalhar, comer, vestir, tomar banho e só dormias... e dormias... e nada dizias... e eu ali, a olhar para ti... a olhar por ti... na expectativa... e percebia.
Não posso mais... Não posso mais arrastar-me no oceano da tua indecisão por que a pessoa com quem te dás tem tanto medo de enfrentar a vida de frente como tu, tem medo de seguir os seus sonhos como tu, e parece tão incapaz, como tu. Chega... Não quero mais isso para mim. Já te descobri o suficiente. Tenho visto, ouvido, e sentido o suficiente para me descobrir a mim mesmo e o que não quero é continuar nesta farsa asquerosa que guardo nesta caixa de pandora a que chamam de coração. Tentei mostrar-te como o sexo não é importante para mim e, não é. Mas faz doer imenso quando se ama alguém. Desta forma de pensar não me posso libertar eu e, dói-me. E tu bem o viste e, descordas-te. Pois para ti se não há sexo não há relação... mas que merda de pensamento é esse?? Serei demasiado burro para a ver?? Para que quero eu o sexo sem o resto? Para isso vou ali para a casa de banho com uma revista debaixo do braço, ou um filme no portátil. Queixas-te e aceitas esse teu descontentamento? Talvez não sejamos tão diferentes quanto isso. Ou fui eu que me tornei mais como tu? Quem sabe...

O amante quer ser como a pessoa amada, quer ser a amada para amar o corpo que é dele. É isso que quero, amar-me a mim mesmo através de outro corpo, que não aquele que tenho, amar-me através do corpo de outra pessoa, quero ser o teu corpo quando me estás a amar. Quero sentir-te a amar o meu corpo e a minha pessoa, pois amar-me a mim mesmo é como o meu olho esquerdo a tentar dizer ao meu olho esquerdo para ver de que cor é que ele é... não consegue! E o único momento em que essa ilusão é possível é frente a um espelho. E como eu uso um espelho para o meu olho esquerdo ver qual a cor que ele tem, também eu te queria usar como ilusão da realidade, como espelho, para me mostrares através do teu corpo e amor por mim o quanto eu próprio me posso amar noutro corpo que não o meu. E será nessa busca por amor próprio que nos lançamos numa relação? Sexo ou masturbação? Onde está a diferença? Queremos ter um orgasmo com outra pessoa quando o podemos ter sem ela? E ao proporcionar à outra pessoa a mesma sensação vamos retribuir com a mesma ilusão de espelho que ela se convenceu que precisa? É isto a que chamamos de amor?

"Estórias de Amar" pag. 166, António Manuel de Brito.