segunda-feira, fevereiro 27, 2006

Citação - Agostinho da Silva

Do que você precisa, acima de tudo, é de se não lembrar do que eu lhe disse; nunca pense por mim, pense sempre por você; fique certo de que mais valem todos os erros se forem cometidos segundo o que pensou e decidiu do que todos os acertos, se eles forem meus, não seus. Os meus conselhos devem servir para que você se lhes oponha”.



Agostinho da Silva (1906-1994), Textos e Ensaios Filosóficos I , Âncora Editora, 1999.

domingo, fevereiro 26, 2006

Esta semana - Publicidade em toda a parte

Esta semana - publicidade

Esta semana começou com um leve amargo de impotência perante a vida, um sentimento de insatisfação perante o que faço. Quando nada de materialmente produtivo faço acabo por sentir aquela pequena revolta sobre quem sou. Estudar tem dessas coisas, mas acaba por ser bom, ajuda a reconstruir-me. E na segunda feira à tarde enquanto vinha no metro e, os meus colegas haviam saído na estação anterior, deixei-me estar ali, a observar. A observar os outros e a observar-me a mim. E naquela carruagem renasceu uma antiga ideia, um antigo ódio, daqueles em que os factos diários acumulados nos vão entupindo o raciocínio e os sentidos. Publicidade descarada, que como bandeirolas em dia de festa, estavam presas ao tecto da carruagem de metro. Pus-me a examinar o mecanismo que as prendia, passei uma mão pelo papel colorido e senti-lhe a textura. Comecei a pensar no porquê daquilo ali estar, de me deixar olhar para aquelas folhas e não estar a olhar para uma imagem de uma qualquer paisagem, de um qualquer quadro famoso, de um desenho de um artista anónimo. Lembrei-me de tudo um pouco com que se pode decorar uma parede, menos com uma imagem de publicidade. E tive vontade de arrancar aquelas folhas todas por ali afixadas, de testar a sua resistência ao meu desejo de destruição. Mas saí na próxima estação e por aquele dia a coisa passou. No dia seguinte, ontem, há mesma hora comentei a ideia com o meu grupo de colegas do costume e, à noite antes de dormir aquela ideia esperneou pelo meu espirito inquietando-me o sono, atormentando-me a vontade de dormir.

«Publicidade por todo o lado; publicidade na estrada, publicidade na estação de comboios muito bem emoldurada ao abrigo da intempérie, publicidade nos jornais, publicidade à saída da estação, publicidade nas carruagens do metro, publicidade na roupa, na televisão, na Internet. Mas que raio? Gigantes ecrãs a cores nas avenidas e cruzamentos debitando publicidade; publicidade nas fachadas dos prédios, nas varandas, nas janelas, até tatuada na pele e nas unhas. Tudo ou todos a informarem-me dos produtos que posso comprar. Todos os recantos nus ou de cores monótonas são preenchidos pelas cores berrantes da publicidade. Qualquer sítio por onde passem mais de dez pessoas por cada quarto de hora tem algum tipo de publicidade.» E procurei encontrar todo o tipo de argumentos que rebaixassem a honrosa presença da publicidade no meu dia a dia. E algures entre estes pensamentos lá adormeci.

Mas foi só no dia seguinte, ou seja hoje, quando me enfiava novamente na carruagem de metro que tive uma estranha sensação de premeditação, de "deseja, que logo pode acontecer". Naquela carruagem, outras cabeças que não a minha, outras mãos que não as minhas, pareceram ter tido a mesma ideia que eu tivera uns dias antes pois, e sem contemplações, arrancaram e rasgaram todas as folhas de publicidade da carruagem. Ao repararmos no detalhe eu e os meus colegas descaímos em risos. Coincidências? O certo é que a minha ideia deixou de ser original e perdi-lhe o interesse. Tenho que ter cuidado para não pensar com tanta força. É que pode acontecer.

(22-2-2006)

Uma manhã

Uma manhã.

Recolhi-me à estação e sentei-me apertando as mãos enluvadas num livro quando a dois passos de mim, correndo da chuva, os meus olhos reconheceram-na. Parece ter sempre um ar distante, sempre semi ausente, o seu rosto constante como o de uma estatua, transmitindo-me uma cortina de ferro para as suas lutas interiores. Mas ela estava ali, como já disse, a dois passos de mim, e eu pousei o livro no colo e esticando-me no banco puxei-lhe a manga do casaco com um dedo. Ela olhou para mim e reconheceu-me como quando se abrigara ali na paragem e reconhecendo-me nada me dissera por eu não estar naquele momento a olhar para ela. E como que bruscamente acordada da sua letargia lançou-se sobre mim bruscamente num tal estado de euforia e cumprimentou-me, pachorrentamente, com dois beijos no rosto. O seu cabelo molhado, fresco da chuva ou de um banho matinal de segunda feira, roçou pela minha cara. Primeiro na face direita, depois pela face esquerda. Os olhos que nos estivessem a ver pensariam que eles apenas se conhecem, que ele só a cumprimentou por que ela era uma ela e que assunto nenhum teriam já em comum pois, ela permaneceu de pé e ele deixou-se sentado, mesmo depois de a ter convidado a sentar. Os olhares perderam-se por outras paisagens que não eles mesmos, e o silencio de ambos falou mais alto que todas as saudações, que todas as perguntas de «como estas».

A manha estava fria e não havia necessidade de a aquecer. E tal como se encontraram da separação pouco se notou, fluiu natural e, seguiram os seus caminhos, não indiferentes mas tão só apenas não os mesmos caminhos que os aproximaram.

(21-02-2006)

sábado, fevereiro 25, 2006

Fui beber um café

Aquele café sabia a café. Tinha o sabor que tem todo o café tirado numa máquina e posto numa chávena. Tinha toda a espuma torrada que um café costuma ter. Sobre a superfície daquela espuma nenhum barco quebrava a bravura das ondas, nem nenhum novo continente estava ali para ser descoberto. Só os meus olhos vogavam sobre aquela superfície quente, que reflectia tão só escuridão nos meus olhos. Um rebuçado vermelho casado com um pacote cinzento de açúcar adornavam o meu pires e, a minha mão, numa dança esquelética com o equilíbrio das pernas, acompanhava o conjunto todo, para a mesa.

Sentei-me e as conversas já fluíam. Outras caras novas chegavam, cumprimentavam e cumprimentaram-me, aproximavam-se e sentaram-se. Rituais estudados com prática, gestos que se deslocavam em correntes de ar por uma porta, da cadeira para a mesa, de ela para ele, de nós para o mundo. Entretanto, o café, esse, arrefecia. Levou uma dose de açúcar, mas os grãos de café são amargos e o café continuou amargo. Saboreei dois goles e por momentos esqueci beber o que bebia.
Imaginar, realizar.

Pensar, concretizar.

Sonhar e fazer.

Como se une a alma com o corpo? Porque sinto ambas tão separadas? Porque sinto que as tenho e que a mim não me pertencem?

Vou até ao balcão e peço mais açúcar. Deito-o na meia chávena de café e misturo. A colher roda pelos dedos. Roda depois pelos lábios e, pelos lábios, roda um sabor amargo de café. E por mais açúcar que lhe ponha, por mais doce que o sinta, existe sempre no final, quando a colher abandonou já a língua, um travo de grãos de café. As conversas concentram-se nas experiências com o álcool, nas vezes que se subiu e desceu naquela coluna lá para a discoteca, nas pessoas que se abraçaram e se tocou, e nos restantes estados de fuga que levam da vida que têm e, que não sei por que motivo, não querem fazer mudar. E ali onde agora estou, onde saboreio a doçura do momento, há um travo nos movimentos que me chama para outro lado. Não é a bola grande e pesada que foi contra os pinos jogada; não foi aquela que passou que em mim nem reparou. É o por ali já ter estado sentado, por aqueles cheiros de tabaco, por aquelas vistas de felicidade confusa, por aquelas vontades sem nenhuma. É este lado escuro, onde a espuma torrada que não sinto nos lábios se transforma num continente de pensamentos, donde observo um horizonte fisgado entre um céu e um oceano, limpo de nublosas nuvens. É este lado de um muro de 24 metros que já subi, é este outro lado da montanha que já atravessei.

E em mais um golo sinto a secura de ali estar, um amargo que já não vem do café que bebo mas sim daquele que não bebo. A mesa suja, o fumo que se eleva no ar e que me intoxica as narinas, os braços que se perdem no tampo da mesa em composturas de bem estar, e em cada olhar e em cada sorriso mais um segundo que desgasta o corpo e encharca a alma. O café já é só borras e resquícios de água. Toda a reunião começa por terminar e eu levanto-me, agarro no rebuçado vermelho que não paro de abanar e vou lentamente voando no seu doce para a chuva persistente que teima em não parar. E eu só fui beber um café.