quarta-feira, julho 19, 2006

Crónica do Astro

Deixa para amanhã o que podias fazer hoje

Penúltimo dia do mês de junho. Avizinha-se o confronto semanal entre mim e a senhora que me vende a senha do passe. Começo já a sentir a tensão, os calafrios, a boa disposição que tento transmitir para fazer escorregar a comunicação. As notas a saírem da carteira, depois o troco quase sempre mal contado; vezes ouve em que me deixei levar, outras acabei por ser o beneficiado. Não me importei muito com o facto, pois hoje conto com grande atenção todos os trocados, com a precisão de quem sabe toda a tabuada de cor. Quase que levanto vou da cadeira enquanto o condutor do autocarro passa por mais uma longa lomba feita hoje passadeira. Há condutores de autocarro que ainda não se parecem ter habituado à ideia, ou simplesmente sentem um prazer sádico de ver as caras dos passageiros assustadas pelo impulso vertical.

Assim interrompi estas ideias que se me passeavam pela mente, enquanto perguntava ao meu corpo, com muita pouca vontade de andar, se devia, ir ou não ir, buscar a dita senha do passe. Eram só mais três estações, cem passos até à loja e mais quinhentos para voltar para casa a pé. Mas hoje o meu corpo dizia-me que “não, não vás. Deixa-me chegar o mais depressa possível a casa, deixa-me cair no sofá e beber um documentário do Discovery Channel.” E como é difícil resistir às vontades do corpo. Quando ele tem sede eu bebo, quando ele sente fome eu dou-lhe de comer, quando se sente cansado mudo de posição para descansar. O corpo é uma prisão caprichosa, é uma princesa a quem é difícil negar um pedido. A paragem aproximava-se e meditei por momentos na frase “Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje”, como parecia tão tipicamente português o desrespeito por este preceito popular. E não hesitei mais, ou era agora ou não era, e toquei para sair. Levantei-me e deixei para amanhã o que podia fazer hoje. O autocarro estancou, as portas separaram os lábios de borracha que as unia e eu saltei para o chão, descarregando todo o meu peso na calçada em reparações, “E onde está o espaço para os peões? Lá tenho que me atirar para a estrada!”. Por ali estavam dois montes de pedra cubica de branco calcário, um outro de areia grossa alaranjada e as habituais fitas vermelhas e brancas a vedar a passagem. Ou seja peões para o meio da estrada. “Vão melhorar o passeio. A gente aguenta o perigo”. Saí da estrada para a área transitável do mesmo passeio. O autocarro arrancou nas minhas costas e continuou o seu destino estrada fora. E eu, passeio fora, seguia o destino que era meu. Subia a rua como tantas outras vezes. As mesmas casas, o mesmo cão rezinga que por passar tanto tempo fechado ladrava irritantemente aos transeuntes. Cheguei ao cimo da rua e olhei uma das casas mais velhas, se não a mais velha das casas do meu bairro. A casa onde o meu já velho vizinho apoiava os cotovelos sobre o muro, observando os transeuntes, com o cabo da sua bengala pendurado no parapeito. Aquela bengala, a terceira resposta ao enigma da esfinge grega, “Qual é a coisa qual é ela... que há noite caminha com três pernas?” Mas naquele momento não parecia ali estar. Mas espera. Afinal até ali estava. Duas senhoras, talvez as filhas, apoiavam-no pelos braços. O velhote parecia não conseguir já caminhar, e talvez por isso havia tanto tempo que não ali o via. Olhei as senhoras e acenei-lhes um “Boas tardes”. As suas cabeças viraram-se e a resposta não se fez esperar, mas o que se seguiu eu é que não esperava:

- Podia dar-nos aqui uma ajuda? É que o senhor Farinha caiu e nós não o estamos a conseguir levar daqui. – Soltei a mochila das costas contra o passeio e transpus o portão principal para o outro lado do muro. Cumprimentei o senhor Farinha que a grande custo se impelia para a frente, pelo estreitíssimo espaço que existia entre o muro e um monte de terra à mesma altura.

- Eu estava ali na minha varanda e vi o senhor Farinha caído aqui deste lado a tentar levantar-se.

- Eu vinha a passar pela estrada quando aqui a senhora A... me pediu ajuda, mas não estamos a conseguir dar conta do recado.- Percebi então que as filhas elas não eram, e uma delas minha vizinha era e que eu mal a reconheci. Troquei de lugar com uma das senhoras e agarrei o velhote por baixo do braço. Cumprimentei-o com um aperto de mão e amparai-o o melhor que pude. O senhor Farinha rastejava um dos pés queixando-se das dores que lhe causava move-lo. Puxando-lhe uma perna de cada vez pela bainha das calças, lá encaminhamos, os três, o simpático senhor Farinha até ao interior de sua casa, para onde dizia querer que o deixasse-mos pois ainda tinha que rezar o terço. Pelo lento caminho de trinta passos que se percorreu do jardim até à sala fomos brindados com a jovialidade de quem não podendo quase andar ainda cantava o Malhão-Malhão para aqueles que o encaminhavam devolta a casa. Sorri para as senhoras e elas para mim. Como recompensar o silencio de um acto sem preço! Atravessamos o terraço onde um dia eu brinquei num monte de areia que ajudou a construir a casa dos meus pais. Ao entrar pela casa adentro tentei recordar a ultima vez que ali tinha posto pé: a senhora Tirminha andava por aquela cozinha de volta de uma balança e queria pesar não sei o quê, mas para lá disso as minhas lembranças eram muito escassas, fragmentadas, não conseguia ter certezas sobre quais tinham acontecido e sobre quais tinha imaginado.

- As filhas vem cá cuidar deles, mas não podem cá ficar o dia todo. Pelo que se acontecer alguma coisa tão entregues a si mesmos, ou a alguém que os acuda. Eu já cá tive que vir uma vez socorre-lo. Ele gosta de se levantar e ir encostar-se ao muro para ver quem passa. Não é assim senhor Farinha? Está a ver o que pode acontecer? Não deve ir mais para ali.

Consideradas as duas pessoas mais velhas do lugar de Bicesse, o senhor Farinha e a dona Tirminha podiam contar toda a historia da colonização do nosso lugar, das pessoas que por lá compraram um espaço e se instalaram e que já lá não moram mais, pois morreram e, tudo o que fora deles era agora dos filhos e que esses já eram diferentes dos pais por isto e por aquilo e sempre por algo mais. O passado nunca é o mesmo que o presente e nunca igual ao futuro.

Encaminhámos o velhote para o sofá da sala, sentamo-lo e no agradecimento rouco mais singelo, mais puro que ouvi deixamo-lo sossegado a rezar o terço. As suas mãos seguravam muito unidas o seu símbolo de fé. A curiosidade levou-nos a outra sala onde acamada uma senhor idosa abria e fechava a boca como que falando para os céus, agarrando-se depois com as mãos aos ferros de guarda da cama. Parecia estar num estado espasmódico que a idade e a doença avançadas lhe haviam trazido. A imagem daquela senhora ali deitada não me impressionou. Aquela forma de velhice a mim nada me disse. Era simplesmente um estado de quem ainda luta pela vida, de uma medicina moderna que prolonga o estado de decrepitude para a qual caminhamos, ou era a tenaz vontade de quem ainda não deu a ultima palavra pela vida e que a este mundo ainda queria dizer alguma coisa. E se assim era, talvez algo se tenha ainda dito.

Saí, recuperei a mochila do chão e despedi-me das senhoras.

Se deixei para amanhã o que podia fazer hoje, outras coisas houve que não ficaram para o dia seguinte.