sábado, fevereiro 26, 2011

O senhor Primeiro Ministro de Portugal - FRAGMENTOS LITERÁRIOS - 3

O senhor Mário de Oliveira, reformado da Função Publica, colocou o polegar sobre o Censor de Identificação Digital e aguardou pela confirmação do sistema. Dois segundos depois surgiu o seu número 18 328 514 de votante democrático da Republica Unida do Estado Semanal Português. Apareceram no visor alguns dados pessoais do seu utilizador e, pressionando o botão de “Seguinte”, entrou nas possíveis escolhas de votação. Passou os olhos por elas rapidamente e, com um ar inexpressivo por falta de um adjectivo que lhe correspondesse, seleccionou e confirmou a opção de “Decapitação Publica”.

O senhor Primeiro Ministro de Portugal olhou do seu lugar o ecrã das estatísticas do país que marcavam o seu destino para a próxima semana eleitoral. No gráfico de barras a opção de “Decapitação Publica” aparecia com uma votação de 85 em cem, seguida de “Castração” com os restantes 15% de votação. “Cortar dedo da mão”, “Oposição” e “Mais 1 Mandato” permaneciam nos 0%. Um enorme palavrão trovejou da boca do Primeiro Ministro que de imediato saltou da cadeira para reflectir na situação Nacional. Mas que maldade teria ele feito ao povo português durante esta semana? Lembrou-se que tinha visitado um lar de idosos para presos por violação e assassínio. Até chegou a dar de comer a uma velhinha de ascendência tibetana que lhe contou ter matado o marido com agulhas de acupunctura enquanto ele dormia enrolado numa estátua do Buda. Ciúmes, tinha ele concluído com um sorriso. Os repórteres estavam lá; gravaram tudo: as palavras de consolo e de promessas para a próxima semana eleitoral, os gestos afectados de quem nem sequer pode controlar e decidir o seu destino – afinal o povo português é exigente e difícil de se governar por qualquer um.
Ou quem sabe se não teria sido o seu discurso inflamado com o elemento do partido da oposição – afinal muita merda teve que ser dita para chamar os portugueses à razão - e talvez ele tenha ferido muitas sensibilidades acomodadas nos sofás. Lembrou-se que tinha defendido a posição de, logo no primeiro ano, meter na cabeça dos futuros cidadãos, o estudo intensivo de calculo numérico e de pelo menos duas línguas estrangeiras, com complementos de saúde humana, em particular a sexual. O seu opositor político refutou-lhe essa necessidade expressando a falta de tempo que isso iria originar nas criancinhas; que os pais começariam a sentir as suas ausências por mais de 4 horas fora de casa, e sobre os problemas psicológicos que poderiam afecta-las com estudos tão exagerados para uma idade tão precoce. O que no final exigiria uma total reformulação do ensino nas escolas e que para o espaço de mais uma semana presidencial seria um trabalho forçado para muitas directas.


O seu olhar voou para o relógio digital sobre a mesa, que marcava, em contagem decrescente, o final de mais um mandato eleitoral. E pelas quatro horas que faltavam para o bloqueio das urnas, parecia que aquele mandato, iria ser realmente, o seu laminar fim. Ficou a imaginar o seu substituto, o novo paspalhão que lhe iria ocupar o lugar. Afinal de contas qualquer um podia assumir o cargo de Primeiro Ministro, pois quem realmente estava sempre a mandar eram os dois únicos partidos políticos, e o cabecilha de cada um deles apenas um bobo da corte para a opinião eleitoral.
A política nacional tinha sido finalmente elevada ao estatuto de actividade pública de entretenimento das massas.

00:06... 00:05... 00:04...

00:03... 00:02... 00:01...


00:01... 00:01... 00:01... Sobre a retina do Primeiro Ministro os mesmos números gravavam-se e pareciam não querer mudar. O seu cérebro não conseguia ver mais o que se seguia. O tempo já não era aquele que o relógio marcava. Durante aquele teimoso segundo a sua percepção da realidade desvelou-se e apercebia-se que não poderia voltar atrás. A sala à volta do seu campo visual começou a ficar desfocada como que atingido por um glaucoma repentino e algumas lágrimas lacrimejaram-lhe pela face.
Da porta irromperam dois toques violentos de aviso seguidos por um homem vestido à pinguim com uma gravata amarela-dourada.
- Senhor Primeiro Ministro, o tempo urge. Estamos à sua espera para a conclusão de mais um mandato. Os cidadãos já decidiram. Temos que partir.
O Primeiro arrastou-se da cadeira com a visão deturpada em lágrimas que não conseguia explicar, e passando junto do seu interlocutor foi saudado com uma palmadinha nas costas cuja a palma da mão o acariciou até à linha da cintura.
Lá fora, junto ao portão, nas traseiras do palácio de São Bento, um carro demasiado vulgar movido a hidrocarbonetos esperava de motor ronronante como um gatinho que se afagasse carinhosamente.
O Primeiro Ministro atravessou o passeio de pedra envolto por relvado seguido do homem vestido de pinguim. A porta do Opel foi-lhe aberta e virando a cabeça para a grande casa parlamentar num definitivo adeus os seus olhos foram encontrar a galhardeada bandeira portuguesa que repousava encolhida ao sabor da ausência do vento. Enxugando um dos olhos meteu-se no interior do veiculo e alguém voltou a fechar-lhe a porta.

4 de Dezembro de 2004

sexta-feira, fevereiro 18, 2011

FRAGMENTOS LITERÁRIOS - 2

Uma conversa com o Todo Poderoso

Esta entrevista teve lugar num local não especificado, num tempo não determinado, pois afinal estamos a falar com o Deus.

- Omnipotente Deus, agradeço desde já a sua disponibilidade divina. Então começaria por Lhe perguntar qual é a visão que tem do mundo?
- Por favor trate-me só por Deus. Omnipotente é uma palavra muito forte. Pois o sentido humano que ela têm não é o mesmo que o sentido celeste que nós aqui lhe damos. Mas respondendo à sua pergunta directamente: a minha visão do mundo é total. Vejo tudo e todos. Nada me escapa.
- Uma questão muito discutida entre nós humanos é a da sua existência. Podia esclarecer-nos um pouco e tentar explicar aos leitores se você, Deus, existe realmente?
- Essa sua pergunta é realmente muito pertinente. Penso que é a primeira vez que me é dirigida directamente. Ora bem, como é que Eu, Deus, posso afirmar a minha própria existência, ou não existência, de forma a que você, e os seus leitores, fiquem convencidos? Está a pôr-me numa posição muito delicada. Então é assim: para aqueles que crêem na minha existência, Eu existo. Para os que não crêem, Eu simplesmente não existe. Não creio que exista outra forma de por as coisas. Realmente ambas as respostas estão correctas, pelo menos para vocês humanos. É claro.

quinta-feira, fevereiro 17, 2011

Escrever ou Nao Escrever - FRAGMENTOS LITERARIOS - 1

O meu grito de espanto, de admiração, de descoberta, por ter encontrado um autor já perdido, eu próprio.... AH.... 


E lá vai então a historia:
Andava eu a vasculhar no sarcófago do meu disco rígido quando começo a encontrar textos, pequenos textos perdidos, escritos num tempo em que também me sentia perdido, não é que hoje já nao me sinta perdido, ainda o sinto, mas aprendi melhor a viver com isso. Dizia eu, textos dispersos sobre temas vários, diabruras de quem queria aprender a escrever e muito pouco fez. E comecei a rele-los e a rir. E diverti-me. E a perguntar-me como alguma vez consegui escrever tais coisas. E visto esses textos já nao serem meus, ou melhor serem de um outro eu, que já lá vai, que já passou e que se foi perdendo lá atras no tempo, achei que estava na altura de tentar massacrar possíveis leitores, amigos, conhecidos, com esses textos, com aquelas pérolas baças da minha realidade ou da minha ignorância. Mundo digital, estes são os meus Fragmentos. Fragmentos, este é o mundo digital. Talvez alguém se consiga divertir com eles, como eu me diverti. E assim vai nascer o que vou chamar de Fragmentos Literários. Os meus fragmentos literários... Os fragmentos literários do Paulo Astro. ...AH...


FRAGMENTO LITERARIO - 1


Sabores

Há um sítio onde uma cortina de calor emanado das cozinhas se pode afastar com a mão ao passar pela porta. Há um sítio em que cada passo que se dá é saboreado pela liberdade de se caminhar para a mesa. Muitos entram anafando os estômagos vazios, muitos saem com as mãos a repousarem neles. Um corredor comprido e largo que dá acesso às cozinhas serve de pedestal para observar todas as cabeças embrenhadas em comer. Uns entram com pressa e saem mais devagar, outros entram com pressa e aceleram ainda mais ao sair. Eu entro como entro e saio como saio, saboreando os que saboreiam. Desfiles de tabuleiros, de talheres embrulhados, de comida quente alinhada escrupulosamente decorada. Os cheiros misturam-se, confundem-se, alimentam. Por detrás do balcão passeiam-se apressadas cozinheiras expeditas de taça numa mão, concha na outra, enchendo o apetite dos outros. Pelos rostos passeiam-se carrancas, sorrisos, riscos de cor, sombreados de rímel, bochechas coradas dos fogões ligados, testas franzidas de indecisas. Pratos muitos e gostos outros tantos. No centro do percurso tira-se o pão, seguido das saladas verdes, laranjas, brancas e nunca douradas. Nas doçuras que se seguem, sobremesas muito juntas e apertadas, a vontade é de a todas por a mão, não deixar nenhuma e regalar-me como um leão, e ao aproximar da caixa só resta o que beber, água cristalina ou encanada. Finalmente a ultima empregada recolhe o meu cartão, passa-o pela máquina, e tira o numero que o meu prato marca. “Obrigado”, por educação, por habito, pelos seus múltiplos significados ocultos nas emoções que despertam. Por que cai bem antes da digestão. E parto para o palco, de tabuleiro na mão, actor que vai comer, que escolhe cada passo de encontro ao chão. Olho à volta e escolho as caras, escolho uma mesa, escolho um lugar. Escolho mais uns passos, mais um piscar de olhos e uma direcção. E escolho caminhar. Chego. Pouso. Puxo. Sento-me. Na minha frente a comida e, de repente, sem a provar, já senti todo o seu sabor.

Paulo Astro.