sábado, maio 13, 2006

Cronica - O que pedem os pedintes

Cruzo-me todos os dias com eles, os pedintes, e pelas voltas que tenho que dar até à cidade de Lisboa facilmente me apercebo das suas preferências pelas carruagens de metro e pelas estações de comboios da linha de Cascais. Diga-se, como já seria de esperar, que o habitat natural de quem mendiga são os locais cheios de pessoas. Mas de autocarro parece que eles não andam. Penso nunca ter visto um pedinte dentro de um autocarro. Os corredores apertados de acesso ao metro são postos de ataque excelentes, muita gente a passar que não consegue deixar de reparar neles. Ora sentados pelos degraus com uma caixinha de esmolas, ora de pé tentando abordar directamente os transeuntes esbaforidos. As técnicas variam consoante a geografia do local, a deficiência que o condenou aquela vida e, a tolerância das autoridades e dos peões. Tolerância. Tornámo-nos demasiados tolerantes ao que se passa na rua que continuamos a alimentar as esperanças dos pedintes que fazem disso já profissão?

(Funcionário Publico) - O seu nome, por favor?
(Pedinte) - Lúcio Desgastado.
(F.P.) - A sua idade?
(P.) - 36 anos.
(F.P.) - Profissão?
(P.) - Pedinte a part-time no Rossio. Mas estou há espera de ser admitido a full time numa das linhas do metro para daqui a um mês.

(...)

O homem vai safando-se como pode e pedir é uma forma de vida tão gratificante como outra qualquer. Limpar os para brisas dos automóveis junto aos semáforos, distribuir papelinhos de apelo por uns tostões que nos levem ao supermercado e que nos deixem repetir aquele ritual tão bem visto de encher o carrinho ou o saco das compras e alimentar as bocas famintas dos filhos que vimos nascer. Os supermercados estão lá. Por que não devo eu também usa-los como todos os outros que se engalfinham por um ordenado no final do mês? Não tenho dinheiro mas também sou gente e também quero comprar. Ou pego num instrumento musical e nuns amigos e lá vamos tocando para os passageiros que estão tão sossegatitos, como se estivessem ali à espera que lhes déssemos música. E quem sabe nos retribuam com umas moedas.

Descia eu as escadas de acesso ao metropolitano quando há minha frente duas jovens, de cabelos lisos escuros e pele torrada pelo sol de verão que ainda não chegou, se apinhavam céleres em volta das pessoas que passavam. Os meus amigos que iam na dianteira contornaram-nas seguindo pelo túnel. Eu deixei-me aproximar daquelas caras infantis que de pasta na mão e caneta na outra corriam de pessoa para pessoa querendo uma assinatura numa das colunas e o montante do donativo na coluna seguinte. Olhei para a folha e li o cabeçalho. Não percebi bem as primeiras palavras mas as segundas afirmavam "somos surdas e mudas" e pediam que as ajudássemos. Olhei para o rosto da miúda que não devia ter mais de 12 anos, olhei o seu grande sorriso, de lábios serrados de humidade como que por um fecho-éclair, e a sua expressão muito contraída, gesticulando que escrevesse. Olhei a folha de papel, olhei para ela que gesticulava. Entreguei-lhe de volta o bloco que ela à primeira recusou e, agarrando-me pela manga insistia que nele escrevesse. Abanei a cabeça e tentei afastar-me e, já em desespero de causa puxou-me para que não me fosse, para que escrevesse, para que lhe pagasse. Na folha de colheita constavam montantes de 1 a 10 euros. Até que tentei afastar a sua pequena mão da minha manga, "Ei, que te fiz eu? Não me vais largar o braço?" Pensei. Os meus dedos apertaram o seu pulso e quase que a sacudia, o que só após alguma insistência lá cedeu e largou-me.

A profissão sempre passa de pais para filhos. Enquanto me afastava pelo túnel, penetrando lentamente nas entranhas do metropolitano, fui tentando imaginar por onde andariam os pais daquelas pequenas. Por onde trabalhariam. Em que estação estariam. Porque lançariam as filhas na mendicidade, equipadas com uma desculpa tão difícil de engolir ao olhar as suas carinhas juvenis tão cheias de energia, de vivacidade nos gestos, de quem ainda possui tanta curiosidade pelo mundo? Porque não puxei de uma nota de 5 euros e não lhas dei? Na sua farsa senti por momentos a minha revolta pela astúcia humana, pela criatividade de que nos dotam as circunstâncias. Eu estaria apenas a dar-lhe um peixe, e não a ensina-la a pescar. E o que elas me pediam não era para tornarem-se pescadoras.