quinta-feira, fevereiro 17, 2011

Escrever ou Nao Escrever - FRAGMENTOS LITERARIOS - 1

O meu grito de espanto, de admiração, de descoberta, por ter encontrado um autor já perdido, eu próprio.... AH.... 


E lá vai então a historia:
Andava eu a vasculhar no sarcófago do meu disco rígido quando começo a encontrar textos, pequenos textos perdidos, escritos num tempo em que também me sentia perdido, não é que hoje já nao me sinta perdido, ainda o sinto, mas aprendi melhor a viver com isso. Dizia eu, textos dispersos sobre temas vários, diabruras de quem queria aprender a escrever e muito pouco fez. E comecei a rele-los e a rir. E diverti-me. E a perguntar-me como alguma vez consegui escrever tais coisas. E visto esses textos já nao serem meus, ou melhor serem de um outro eu, que já lá vai, que já passou e que se foi perdendo lá atras no tempo, achei que estava na altura de tentar massacrar possíveis leitores, amigos, conhecidos, com esses textos, com aquelas pérolas baças da minha realidade ou da minha ignorância. Mundo digital, estes são os meus Fragmentos. Fragmentos, este é o mundo digital. Talvez alguém se consiga divertir com eles, como eu me diverti. E assim vai nascer o que vou chamar de Fragmentos Literários. Os meus fragmentos literários... Os fragmentos literários do Paulo Astro. ...AH...


FRAGMENTO LITERARIO - 1


Sabores

Há um sítio onde uma cortina de calor emanado das cozinhas se pode afastar com a mão ao passar pela porta. Há um sítio em que cada passo que se dá é saboreado pela liberdade de se caminhar para a mesa. Muitos entram anafando os estômagos vazios, muitos saem com as mãos a repousarem neles. Um corredor comprido e largo que dá acesso às cozinhas serve de pedestal para observar todas as cabeças embrenhadas em comer. Uns entram com pressa e saem mais devagar, outros entram com pressa e aceleram ainda mais ao sair. Eu entro como entro e saio como saio, saboreando os que saboreiam. Desfiles de tabuleiros, de talheres embrulhados, de comida quente alinhada escrupulosamente decorada. Os cheiros misturam-se, confundem-se, alimentam. Por detrás do balcão passeiam-se apressadas cozinheiras expeditas de taça numa mão, concha na outra, enchendo o apetite dos outros. Pelos rostos passeiam-se carrancas, sorrisos, riscos de cor, sombreados de rímel, bochechas coradas dos fogões ligados, testas franzidas de indecisas. Pratos muitos e gostos outros tantos. No centro do percurso tira-se o pão, seguido das saladas verdes, laranjas, brancas e nunca douradas. Nas doçuras que se seguem, sobremesas muito juntas e apertadas, a vontade é de a todas por a mão, não deixar nenhuma e regalar-me como um leão, e ao aproximar da caixa só resta o que beber, água cristalina ou encanada. Finalmente a ultima empregada recolhe o meu cartão, passa-o pela máquina, e tira o numero que o meu prato marca. “Obrigado”, por educação, por habito, pelos seus múltiplos significados ocultos nas emoções que despertam. Por que cai bem antes da digestão. E parto para o palco, de tabuleiro na mão, actor que vai comer, que escolhe cada passo de encontro ao chão. Olho à volta e escolho as caras, escolho uma mesa, escolho um lugar. Escolho mais uns passos, mais um piscar de olhos e uma direcção. E escolho caminhar. Chego. Pouso. Puxo. Sento-me. Na minha frente a comida e, de repente, sem a provar, já senti todo o seu sabor.

Paulo Astro.