terça-feira, maio 08, 2007

Beijo

Depois de recolher algumas opiniões entre amigos e familiares sobre o meu ultimo texto "À Conversa Com..." decidi tentar algo mais apelativo, algo que vos convencesse a ler o meu texto até ao fim.. Vamos a ver se é desta ;-) Aguardo pelas vossas críticas num proximo café.

Dois textoszitos em dois dias? Só pode querer dizer uma coisa. Ou não tenho mesmo nada melhor que fazer ou voltei aos meus periodos produtivos de insónias. Uhm! São as duas.


Beijo

- Beija-me. - e ao pedido dela ele aproximou-se ainda mais.

Cheirou-a como um cão faminto que fareja um prato de comida oferecida. Aproximava-lhe o nariz da pele sem lhe tocar. Farejou-lhe o ar das orelhas, inspirou o aroma do champô que se libertava dos seus cabelos espigados. Foi inclinando a cabeça até ao ombro bafejando-lhe ar para a pele e a respirar os aromas da transpiração que se libertavam dela. No silencio envolvente os seus corações palpitavam acelerados em expectativa. O seu nariz continuava a sobrevoar a pele dela que como um oceano tempestuoso formava ondas epidérmicas de desejos ocultos. Um dos braços dela não aguentou e chamou-o a si. O nariz dele aterrou-lhe no pescoço onde se enterrou como um prego que penetra a casca de uma árvore. Ela sentiu o contacto e a violência do nariz dele. Mais um centímetro para a frente e, ele teria projectado todo o seu peso sobre o dela e, teriam ambos, ali, caído sobre o sofá como uma mortalha recebe o peso do tabaco. E teriam, ali, esfumado-se num só corpo, contorcentes de ansiedade, queimando-se nas chamas do desejo, ardentes de paixão.

Mas por um centímetro permaneceram de pé.

O braço dela apertava com mais força o seu corpo. O nariz que aterrara trouxera atrás dele uns lábios húmidos, que como tenazes apertavam a lenha de uma fogueira. Os lábios dele navegavam pela sua pele humedecendo-a com caricias quentes. O vapor do seu hálito impelia ao mesmo tempo a bandeira de um mastro cada vez mais crescente. E ela também o sentia, pois toda aquela roupa parecia transparente. E sentindo-o, o seu outro braço livre foi empurrando a sua mão até aos perigosos baixios onde outras naus haviam visto os seus cascos rasgados. Os lábios dele bebiam das ondas da sua pele, tragando lentamente toda a espuma de suor emergente. Aproximaram-se então dos lábios dela e foi nesse momento que pararam. Os olhos fintaram-se em desafio, hesitantes. Eram os olhos do toiro a fintar os do toureador. As mãos cavalgantes aguardavam pela decisão dos intervenientes. Quem avança e quem recua? Quem recebe e quem dá? E no segundo seguinte os lábios dele saltaram de imediato para o nariz dela, saboreando-lhe a respiração.

«Tocar os meus lábios é colher o néctar dos meus segredos.» lembrou-se ele das palavras que ela lhe havia dirigido naquela tarde. Aquelas palavras ainda atonavam à sua mente quando pensava demais nela. Quando só nela podia pensar e recria-la, imagina-la, sem no entanto tocar-lhe. Aquela descrição caída num primeiro encontro não mais lhe havia de sair do pensamento. E a cada vez que os seus corpos ficavam a milímetros ele não conseguia livrar-se daquela frase e da forma como ela o havia dito, dos gestos, da sua expressão facial. Houve naquele momento uma conspiração de sentimentos que nunca mais lhe haviam de arrancar aquela expressão da cabeça.

As mãos dele espetaram-se nos seus cabelos vasculhando o seu couro cabeludo por pepitas de ouro perdidas. As mãos dela agarraram na roupa que lhe cobria o corpo e foram soltando-lhe peça a peça. As mãos dele fizeram o mesmo. E soltos do peso das indumentárias sentiram-se livres para se amarem.

Satisfeitos olharam-se em sorrisos cúmplices e sem palavras. Ela saltou do sofá e procurou a bolsa. Vasculhou o seu interior e sacou um maço de cigarros. Libertou a chama do isqueiro e incandesceu a ponta imaculada do palito de tabaco. Ele deixou-se a observar a sua figura nua e fumegante como um rio que olha um barco a vapor inconsciente da sua nudez perante a água.

segunda-feira, maio 07, 2007

À Conversa Com...

- Você é poeta?

- Quem, eu? Acha-me um poeta?

- Pois você, quem mais está aqui? E segundo os meus padrões de leitura aquilo que escreve é chamado de ‘poesia’.

- Acha mesmo que sim, que aquilo que eu escrevo é poesia?

- Eu acho. Afinal de contas até rima e tudo. Já vi gajos dizerem-se poetas e escreverem coisas na forma de curtas frases, como na poesia, mas que nunca conseguiam rimar palavra nenhuma. E desses eu não gosto nada. Para mim a poesia tem de rimar...

- Mas olhe que existe muita boa poesia que não rima. Por que é que acha que a poesia deve rimar?

- Não sei muito bem explicar, mas se a coisa não rimar não parece tão bonito, não soa tão bem. É como estar a ouvir a Madona cantar comparada com o meu professor de ciências a dar uma palestra sobre o funcionamento do corpo humano.

- Mas que bem. Afinal você também tem uma veia poética.

- Eu? Mas porquê?

- Ora então não se recorda do que disse? Acabou de comparar a Madona a cantar com o seu professor de ciências a dar uma palestra. Já viu a imagem que criou? Eu cá adorei. Essa sua comparação penetrou fundo em mim pois consegui rapidamente imaginar a Madona a cantar e ver no mesmo palco, ao lado da Madona, o seu professor de ciências a recitar uma palestra. Essa é uma das características da boa poesia. Tocar forte e depressa no leitor com o menor numero possível de palavras. A rima é um acessório, serve para estimular a sensibilidade auditiva e influenciar a imaginação de quem lê. Se bem dirigida, dá uma força, ou um impulso extra ao poema.

- Então concorda comigo. A boa poesia tem que rimar. Eu sabia...

- Não é a rima aquilo de que falo. É a sonoridade, é o paladar sonoro das palavras que lemos mentalmente. É o som das palavras no local certo com a imagem certa que refinam e aumentam o choque do poema sobre o leitor. E é esse choque que o poema dá ao leitor que torna o poema belo ou não.

- Sinceramente nunca tinha visto a rima nesse aspecto como agora me conta. Então que função tem a rima?

- Que é a rima? Ora observe você mesmo. Já viu como é que aparece disposta a rima? Ás vezes só os versos impares rimam, outras só os versos pares de um poema. Outras há que versos pares e impares rimam, outras só rimam o primeiro verso por cada conjunto de dois versos e por ai fora. As sequências possíveis são muitas. É àquilo a que os linguistas chamam de métrica. Os Lusíadas tem várias métricas ao longo de cada canto, a Mensagem tem outras variantes métricas e muita outra poesia que rima tem métrica. Mas rimar nem sempre fica bem. Nem sempre exprime o que o autor deseja transmitir. A regra de que um poema deve rimar vai contra a própria ideia do sentido da poesia.

- Há vai? Então o que é a poesia?

- A poesia é aquilo que os poetas escrevem.

- Então e quando um poeta escreve uma carta à tia para lhe pedir um quilo de carne de vaca pela Páscoa? Essa carta também é poesia?

- Você gosta mesmo de fazer perguntas complicadas.

- Por acaso até gosto, faz parte da minha profissão, sabe?

- Sei pois. Por isso é que aceitei o seu convite para aqui vir. Se fosse para mais uma daquelas entrevistas aborrecidíssimas sobre o porque escrevi isto e porque escrevi aquilo... não teria vindo. (risos)

(...e a conversa continuou noite fora ao sabor de pevides salgadas e bebidas variadas...)