sábado, fevereiro 25, 2006

Fui beber um café

Aquele café sabia a café. Tinha o sabor que tem todo o café tirado numa máquina e posto numa chávena. Tinha toda a espuma torrada que um café costuma ter. Sobre a superfície daquela espuma nenhum barco quebrava a bravura das ondas, nem nenhum novo continente estava ali para ser descoberto. Só os meus olhos vogavam sobre aquela superfície quente, que reflectia tão só escuridão nos meus olhos. Um rebuçado vermelho casado com um pacote cinzento de açúcar adornavam o meu pires e, a minha mão, numa dança esquelética com o equilíbrio das pernas, acompanhava o conjunto todo, para a mesa.

Sentei-me e as conversas já fluíam. Outras caras novas chegavam, cumprimentavam e cumprimentaram-me, aproximavam-se e sentaram-se. Rituais estudados com prática, gestos que se deslocavam em correntes de ar por uma porta, da cadeira para a mesa, de ela para ele, de nós para o mundo. Entretanto, o café, esse, arrefecia. Levou uma dose de açúcar, mas os grãos de café são amargos e o café continuou amargo. Saboreei dois goles e por momentos esqueci beber o que bebia.
Imaginar, realizar.

Pensar, concretizar.

Sonhar e fazer.

Como se une a alma com o corpo? Porque sinto ambas tão separadas? Porque sinto que as tenho e que a mim não me pertencem?

Vou até ao balcão e peço mais açúcar. Deito-o na meia chávena de café e misturo. A colher roda pelos dedos. Roda depois pelos lábios e, pelos lábios, roda um sabor amargo de café. E por mais açúcar que lhe ponha, por mais doce que o sinta, existe sempre no final, quando a colher abandonou já a língua, um travo de grãos de café. As conversas concentram-se nas experiências com o álcool, nas vezes que se subiu e desceu naquela coluna lá para a discoteca, nas pessoas que se abraçaram e se tocou, e nos restantes estados de fuga que levam da vida que têm e, que não sei por que motivo, não querem fazer mudar. E ali onde agora estou, onde saboreio a doçura do momento, há um travo nos movimentos que me chama para outro lado. Não é a bola grande e pesada que foi contra os pinos jogada; não foi aquela que passou que em mim nem reparou. É o por ali já ter estado sentado, por aqueles cheiros de tabaco, por aquelas vistas de felicidade confusa, por aquelas vontades sem nenhuma. É este lado escuro, onde a espuma torrada que não sinto nos lábios se transforma num continente de pensamentos, donde observo um horizonte fisgado entre um céu e um oceano, limpo de nublosas nuvens. É este lado de um muro de 24 metros que já subi, é este outro lado da montanha que já atravessei.

E em mais um golo sinto a secura de ali estar, um amargo que já não vem do café que bebo mas sim daquele que não bebo. A mesa suja, o fumo que se eleva no ar e que me intoxica as narinas, os braços que se perdem no tampo da mesa em composturas de bem estar, e em cada olhar e em cada sorriso mais um segundo que desgasta o corpo e encharca a alma. O café já é só borras e resquícios de água. Toda a reunião começa por terminar e eu levanto-me, agarro no rebuçado vermelho que não paro de abanar e vou lentamente voando no seu doce para a chuva persistente que teima em não parar. E eu só fui beber um café.