segunda-feira, novembro 14, 2005

Crónica

Crónica Lisboa Atolada na Merda

Viajar por uma cidade é procurar involuntariamente um encontro com estórias sobre gente. No campo ou lá na terra onde judas deixou as botas as pessoas são mais escassas, a natureza ainda é a enarração principal do dia a dia. Na cidade, sotoposto do céu, as pessoas são a única natureza.
Mas afirmar uma Lisboa atolada na palavra começada por m... não é novidade. A sujidade está por toda a parte. No ar, no chão e particularmente nos outros. Somos muitos a atropelarmo-nos pelos espaços vazios da cidade, e limpa-los é sinónimo de criar uma zona de quarentena, isolada, fechada às pessoas e aberta aos técnicos do teste do algodão para uma manutenção periódica de remoção de partículas sólidas e bacteriológicas. Ou seja, a limpar, ninguém passa. Daí a dificuldade de limpar uma cidade.
Mas a visão da limpeza que impregna o pensar dos senhores que mandam levou-os sensatamente a terem ideias e conseguiram implementar a lei na Cidade de limpar aqueles problemas que os nossos melhores amigos não podem, por rações da sua própria natureza animal, apanhar para um saquito e depositar no lixo. Coube aos donos a responsabilidade. E até casas de banho para os caninos se construíram nos jardins. Só é pena que para aqueles que lançam para o chão a beata morta do cigarro, ou o papel e o plástico amarrotados do chocolate e da sandes, a responsabilidade não possa recair sobre os seus respectivos donos. Os donos desses ainda não foram encontrados e identificados.
Mas não era sobre estes factos, tão do conhecimento de todos nós, que quero falar-vos.
Hoje, segunda feira, primeiro dia da semana de trabalho, o termómetro marcava 8 graus Celsius enquanto passava de comboio por Belém. Às oito menos cinco cheguei ao Cais do Sodré. A manhã prometia-se bem gelada, atirando bem lá para o fundo da memória o recente verão seco e queimado. Como de costume dirigia-me para a paragem do autocarro. Apanhei os habituais jornais gratuitos que à saída da estação são distribuídos, e pu-los debaixo do braço aconchegando o casaco ao pescoço. Desfilava eu com os demais sobre a calçada que circunda a entrada da estação de comboios e passo os olhos sobre os três degraus que lhe davam acesso. Como habitual alguns ali esperavam ou descansavam sob o abrigo dos toldos salientes. Eu caminhava em passadas longas, como é meu jeito para quem tem um metro e 91, e por momentos pousei os olhos num mendigo que acocorado avidamente sobre o seu saco de haveres lançava-me uma expressão de ingénua inocência. A seu lado, estranhamente jazia um estranho amontoado, quase um bolo cónico, do que me pareceu ser caca, nojenta e repugnante. E as pessoas à minha volta iam passando. Mas por que se sentara o homem tão perto de tal monte de excrementos? Parecia que o cão da senhora dos jornais tinha feito ali mais um grande monte. Impressionante. Será que o desgraçado não se tinha apercebido da proximidade daquele presente? Mas horror dos horrores!! Eu é que não me tinha apercebido do que se estava a passar. Tive dificuldades em processar e interpretar as imagens que me chegavam aos olhos. A perna que levantei para dar mais um passo demorou minutos até voltar a pisar a calçada branca. O enorme monte de excrementos parecia estar a crescer das costas do mendigo. O deplorável homem, de rosto barbado e estagnado, arrefecia, de rabo para o ar de um branco como leite, com as calças descaídas até meio da coxa, sobre os três degraus de acesso à estação, literalmente, cagando-se para quem quisesse ver. Admirável, soberbo! Não consegui compreender inteiramente o que estava a acabar de ver e, sentindo finalmente o meu pé tocar o chão, lá continuei, eu, meio indiferente meio atónito com o quadro que vira, para a paragem do 45. Não voltei atrás para me certificar se tinha realmente visto bem, pois sabia que o tinha. Talvez não me tivesse demorado mais do que um segundo a observar o homem defecando no abrigo em que já me acostumara a reconhece-lo. Naquela manhã estava realmente um frio do carago (ou seria do cagado...).