Crónica
Encontro com máquinas
Todo o início do mês há o ritual de comprar aqueles pequenos papelinhos que me permitem circular livremente pelos transportes públicos. Das filas frente à bilheteira da estação passei para o rápido atendimento frente a uma máquina . Não há uma cara mal disposta a atender-nos mas também não há um sorriso a receber-nos. A máquina olha para mim indiferente à minha cor de pele, sem preconceitos pelo meu aspecto, insensível ao meu tom de voz que não tenho que lhe dirigir. A máquina está ali para me servir tal como um ser humano, com a diferença de que para a convencer não preciso de abrir a boca e entoar palavras cordeais. Tenho sim é que lhe tocar, pôr-lhe os dedos nos botões certos, pressiona-los com a pressão adequada e, claro, pagar-lhe pelo serviço desejado. Não há respostas mal humoradas ou palavras arrogantes, mas tão só o arranhar dos motores eléctricos nas engrenagens, o esfregar das molas a estender e distender, o roçar do papel pelos cilindros preste a sair pela fenda dos bilhetes. Só ruídos mecânicos, programados pela imaginação do homem. Marquei o destino, marquei o tipo de bilhete e a máquina pediu-me os seus 32 euros e mais uns cêntimos. A minha primeira nota de 20 passou pela goela da máquina sem sobressaltos. Mas a minha outra nota de 20 foram as tormentas. Enfiei o valioso papel na boca da máquina e após a identificação óptica da nota, após os pequenos cálculos do sistema de processamento sobre o dinheiro que me devia ser restituído, a maldita máquina, calculou!! que o meu dinheiro lhe era desfavorável e sem parcimónias, vomitou-o de volta. Tentei passar a nota uma segunda vez. E a reposta foi a mesma. Passei uma terceira e a nota voltou a ser cuspida. cancelei a operação e reavi o dinheiro que tinha sido aceite. Voltei-me para trás para ver se havia fila. Ninguém. E com duvidas sobre a abnegação da máquina ao meu dinheiro resolvi tentar mais uma vez invertendo desta a ordem das notas. A que tinha ficado anteriormente de fora foi aceite mas a segunda não voltou a passar. A máquina estava decididamente sem troco para me dar. Mas atrás de mim já estavam duas pessoas aguardando a sua vez e o comboio já se ouvia aproximar. Hesitei e revistei a carteira. Ou tinha mais dinheiro ou desta ficava em terra. Já lá estavam vinte e faltavam 12. Encontrei uma nota de 5 e sentia o peso das moedas na pequena bolsa da carteira e o comboio já apitava na estação. Tinha que me decidir, o tempo corria sobre carris. Olhei rapidamente as moedas que tinha e fiz uma estimativa, um calculo a muito grosso modo. Senti confiança entre aquelas moedas e arrisquei. Pus-me desenfreadamente a por moedas lá para dentro. Enquanto isso o comboio ia lentamente parando na estação e as pessoas juntavam-se aprumadinhas como pequenos molhes de feijão verde juntos das portas que a dado momento abririam. Eu olhava as moedas a desaparecerem da carteira e o contador monetário da máquina a decrescer: 2 euros, 1,50 €, 1€ e já só tinha moedas de 10 e 5 cêntimos. As portas já se haviam aberto e as pessoas entravam. Cheguei à minha ultima moeda e o contador da máquina ainda dizia faltarem 20 cêntimos. E eu que chegara tão perto. E eu que apostara na decisão errada. E a máquina que não me podia quebrar aquele galo, não me ia fazer um desconto e perdoar-me uma falha do tamanho de vinte cêntimos. Virei-me então para o senhor atrás de mim, que impacientemente agitava na mão as moedas para o seu bilhete. Dedilhava com o polegar moedas douradas e zincadas e também ele tinha cara de quem queria apanhar aquele comboio. Olhei-o nos olhos, rosto de quem já passara a casa dos 40 e, pedi-lhe, nos modos menos desesperosos que me eram possíveis de transmitir naquele momento, por 20 cêntimos que me emprestasse para nunca mais reaver. Esticou-me a moeda enquanto as pessoas entravam nas carruagens. Recebi-a com um muito obrigado e passei-a por aquela ranhura tão escrupulosamente desenhada, a espessura dava para acomodar até à mais gorda das moedas, o entalhe côncavo para acomodar o dedo polegar que empurrava a moeda para o interior daquele mealheiro calculista. Pormenores ergonómicos para que a transação decorra da forma mais cómoda e natural. A moeda cai. O sistema eléctrico da máquina entra em actividade. Zum, zum. O meu pedido é finalmente processado. Saco o bilhete. Oblitero-o numa outra máquina ali mesmo ao lado, uma representante mais pequena e compacta do modelo que me vendeu o bilhete. A ultima pessoa entra na carruagem e o comboio apita para partir. Eu sigo atras dela, e sem dar oportunidade de que a porta se feche carrego no botão verde de abrir. Já dentro do comboio volto a pressionar o botão de abertura, o tempo suficiente para que o senhor que me emprestou os 20 cêntimos consiga entrar na mesma carruagem, e em dois segundos as portas fecham. O senhor apressa-se no corredor por entre a multidão de passageiros, com o seu casaco castanho oscilante, até os meus olhos o deixarem de ver. E perco-o de mira.
Até quando lhe ficarei eu a dever aqueles 20 cêntimos? Talvez até à próxima vez que encontre alguém que precise de dinheiro para comprar um bilhete de comboio. Sobre os carris as rodas estavam já em movimento.
(2/3/2006)
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